A lama, o caranguejo e o homem

Ecossistema molhado e a simbiose com o povo do Nordeste





Texto: Renata Farias
Fotos: Andréa Rêgo Barros

O sociólogo pernambucano Josué de Castro já proferia em seu livro "Homens e Caranguejos" (Civilização Brasileira, 2001): "Os mangues do Recife são o paraíso do caranguejo. Se a terra foi feita para o homem, com tudo para bem servi-lo, o mangue foi feito especialmente para o caranguejo. Tudo aí é, foi, ou está para ser caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela". Razão tinha o estudioso da geografia do homem do Nordeste. Esse vasto ecossistema de transição entre os ambientes de terra e de mar está presente em boa parte do litoral do País. Porém, Pernambuco sustenta a maior área de manguezal urbano do mundo ("O Valor da Preservação do Parque dos Manguezais em Recife-PE", Guilherme Nunes Martins e Andrea Sales Soares de Azevedo Melo, 2007) - cerca de 270 km² . Olhando para as linhas deixadas por Josué, uma dedução é lógica. O mangue e os elementos pertencentes a ele estão intimamente ligados com a sociedade dos lugares, marca a paisagem, mas também a vida do homem ao seu redor.

Esse bicho aparentemente estranho - classificado como crustáceo decápode, dotado de carapaça larga, e quase achatada, com pernas anteriores terminadas em resistentes pinças assimétricas - foi objeto de pesquisa, como já vimos, de estudiosos como Josué, e também foi fonte de inspiração para gente como Fred Zero Quatro, autor do primeiro manifesto do mangue chamado "Caranguejos com cérebro" e Chico Science, criador do Manguebeat, movimento revolucionário da cultura local e nacional. Assim como a relação entre o homem nordestino e o próprio manguezal, ninguém sabe onde começa um e termina o outro. Em outras épocas, os povos dessas florestas, sim, o manguezal se classifica assim, catavam os caranguejos, arrancavam apenas a pata que possuía a pinça (conhecida como patola) e devolviam-os novamente no meio ambiente porque sabiam que as tais patas voltariam a crescer e nunca faltaria caranguejo.

Essa pesca de subsistência se desenvolveu e com o passar dos tempos grupos começaram a estruturar suas rotinas em torno dos manguezais, buscando na pega do caranguejo um meio de sobrevivência não só alimentar como financeiro. O animal, portanto, virou fonte de renda de comunidades inteiras que se dedicam à cata do animal - que é destinado, principalmente, ao consumo à mesa, é produto gastronômico verdadeiramente apreciado em muitos bares da região Nordeste.

O sabor suave de sua carne branca, e magra, confere a estampa de saudável a esses pequenos bichos tão abundantes no litoral local - mas não em quantidade suficiente para abastecer em grande volume os estabelecimentos pernambucanos cujo consumo é grande, são ricos em zinco, trazendo benefícios para a imunidade, a formação óssea, a cicatrização, a memória e a coordenação muscular; em selênio, prevenindo o Alzheimer; e combatendo os radicais livres que, por exemplo, minimizam o estresse e envelhecimento precoce. Um ótimo complemento para as dietas normalmente empobrecidas das comunidades que circundam essas áreas de mangue. Para garantir o caranguejo nos cardápios, muitos restaurantes buscam fornecedores em outros estados, pois por aqui o volume não é dos maiores, e suprem apenas pequenas demandas.

A pega
No distrito de Nossa Senhora do Ó, em Ipojuca, muitos dos moradores da comunidade Zé Pojuca, na Usina Salgado, têm na pega do caranguejo o único meio de subsistência. É o caso de Cícero Paulino dos Santos, catador há 48 anos, e de Inaldo Domingos, o Seu Nana, que ‘vende todo o seu garimpo para restaurantes das redondezas e pessoas que passem em sua residência em busca dele. Cobrando R$ 0,50 ou R$ 1, valor que varia de acordo com o tamanho do bicho, o catador pega uma média de 200 caranguejos ao dia, quantidade que, segundo ele, dá a liberdade de escolher o dia em que deseja trabalhar, pois o valor angariado com essa remessa lhe é suficiente.

O ato da pega, sim, é dessa forma que se chama a atividade de cata no manguezal, tem um quê poético. Ficar à espreita no momento em que homens e mulheres se enfiam lama adentro é entender a relação simbiótica entre ser humano e natureza. A maré baixa anuncia o surgimento do mangue, uma instigante paisagem pintada por lama e um emaranhado de galhos singular. Pequenos e grandes buracos no chão indicam o tamanho da presa, se ali há um miúdo ou um mais robusto caranguejo. Às vezes, é preciso encostar até a cabeça na lama para alcançar o animal a quase um metro de profundidade. Aos poucos, os bichos vão se amontoando e debatendo-se dentro de grandes sacos de plástico grosso. Mesmo com grandes pinças, os catadores não relatam beslicões frequentes, a prática no manejo desse esquisito faz a cata correr tranquila.

Chama atenção minúsculos caranguejos, muitos do tamanho de uma moeda de R$ 1, chamados pelos catadores de chama-maré por suas graúdas patolas fazerem movimentos de vai-e-vem, como se estivessem chamando alguém, que juntam-se aos montes pelo chão. No alto, saguis curiosos disputam os galhos prestando atenção em cada movimento humano. Pequenas poças de água salgada esquentam sob o sol escaldante e assumem um tom esbranquiçado formando os primeiros cristais de sal. E assim lado a lado, se segue a rotina no mangue, e enquanto os homens trabalham, a natureza prepara a próxima baixa da maré.

Seguem às panelas
Saiu do seu habitat natural, virou prato. Na panela, o caranguejo deixa de ser apenas um bicho com dez patas e se transforma em ingrediente de consumo. O preparo mais comum, cozido na água e sal preserva o sabor natural do bichinho, mas típico também, quando acrescido de verduras, temperos e leite de coco, transformando-se na conhecida caranguejada. Aliás, para a elaboração desse último prato, recomendam-se alguns cuidados. Segundo Amara Araújo, ou Dona Timbal, comandante há 20 anos do Bar da Timbal, em Nossa Senhora do Ó, cozinheira especialista em frutos do mar, uma referência por lá, cozer o caranguejo no leite de coco com a cabeça é um erro comum. E ensina com propriedade: é necessário retirar a cabeça do animal, escová-lo bem e só então levá-lo à panela, feito de outra forma, o caranguejo ganha tonalidade escura.

Por toda a Capital pernambucana também, variações com o animal disputam com os preparos mais tradicionais. São casquinhos recheados e cobertos com farofa, quebradinhos - a carne é retirada e cozida com verduras rendendo um ensopado -, caldos e patola no vinagrete ou à milanesa, ocupam exemplarmente as mesas de clientes que, às vezes, não fazem ideia do significado do animal. Nossa homenagem a esse crustáceo estranho não poderia ser, portanto, outra. Orientados pelo chef Lázaro, do restaurante Guaiamum Gigante Praia, damos o tempero de uma das partes mais apreciadas desse bicho, a patola. Bote a cervejinha para gelar e comemore nossos cinco anos petiscando um dos mais representativos ingredientes do Estado.

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