O primeiro berro

Animal e o homem do Sertão inspiram cultura no interior

Texto: Vanessa Lins
Foto: Igo Bione

"Do bode se aproveita até o berro", diz a expressão popular sobre a disponibilidade para consumo quase total do bicho sertanejo. Aliás, berros são ouvidos há tempos. A cabra é o primeiro animal leiteiro conhecido pelo homem. Os caprinos foram os primeiros a serem domesticados, há oito mil anos. Na Grécia Antiga, ocupavam o topo da mitologia, viviam no Olimpo. Bodes eram os animais escolhidos por Tor, deus do Trovão e dos raios, para a tarefa de puxar sua carruagem. Chamavam-se Tanngnost e Tanngrisni. Não menos que Zeus, divindade suprema, foi amamentado pela cabra Almatéia. Outra cabra ficou famosa por pastar entre manuscritos do Antigo Testamento, na Jordânia.

Em Pernambuco, a relação íntima e árida entre os bodes e o ambiente e sua população originou uma cultura própria que ultrapassa os cercados do curral - xilogravuras e cordéis recorrem a essa parceria entre homem e animal constantemente. O escritor Ariano Suassuna, natural de Taperoá, certa vez falou da importância que uma criação de cabras, em 1970, foi uma das passagens mais marcantes da sua vida, junto ao lançamento do "Romance D´a Pedra do Reino, e do Movimento Armorial, pois ao conviver tão próximo delas, mudou radicalmente sua opinião injusta e negativa que tinha até então desse tipo de rebanho. Ariano se rendeu aos berros estridentes, mas muita gente alimenta resistência injustificada por puro preconceito.

Hoje em dia, dois tipos de rebanho suprem mercados distintos: o de desenvolvimento genético de raças e o de corte puro e simples. Os principais municípios criadores de bode de mesa, ou de corte, integram a região do Pajeú, tendo Afogados da Ingazeira e Serra Talhada, alguns destaques, enquanto os criadores de animal de registro, com finalidade de desenvolver matrizes mais pesadas e melhor qualidade de carne, ficam no Moxotó, em lugares como Sertânia, Ibimirim e Custódia.

E se nas folhas de cordel o bode estrela como personagem principal das narrativas dos poetas do interior, na mesa ainda sofre preconceito e, mesmo comum nas panelas do Sertão e Agreste, ainda não se tornou insumo elegante que tenha merecimento de ir às mesas mais elaboradas. Uma pena. Em tempos de restrições nutricionais e de busca por recursos sustentáveis, o bichano de cheiro forte ganharia nota 10. Aliás, o tal odor característico dos exemplares adultos é, talvez, o principal vilão nessa rejeição do animal na gastronomia. Ao contrário dos seus aparentados ovinos, mais considerados, como bem se diz, nas boas mesas da Capital, com aroma e sabor mais suaves, portanto, mais aceitáveis pelo paladar do pernambucano. O aroma desagradável, segundo o veterinário Welington Lafayette, irmão de seu Amaro, se faz mais presente em cabras e bodes maduros. "É o feromônio da espécie e pode também impregnar na carne se o couro não for retirado corretamente no momento do abate", explica.

Por argumentos nutricionais, o bode ganha a disputa com qualquer ovino. É carne dita do tipo vermelho, mas em termos calóricos é mais magra que o frango, por ser mais seca, sem muitos veios de gordura, ao contrário de cordeiros, dotado de maciez resultante, claro, de entremeios gordurosos por toda a sua extensão. Em 100 gramas de bode há 122 calorias contra 162 na mesma proporção da ave. Vitória do berro contra o cacarejo. "A carne caprina tem sido considerada por profissionais em alimentação um produto com alto potencial de expansão, em decorrência de sua composição. Quando comparada a outras carnes vermelhas, como a bovina e a ovina, apresenta quantidades semelhantes em proteína e ferro, porém, quantidades menores de gordura, o que resulta em menor proporção de gordura saturada e calorias, além de menores níveis de colesterol. Assim, a carne caprina é considerada uma carne magra, com pouca gordura subcutânea, intermuscular e intramuscular," revela Roberta Bento, doutora em nutrição e professora do Centro Acadêmico de Vitória, da Universidade Federal de Pernambuco. Por tudo isso, o "bodinho" contribui para reduzir o risco de aterosclerose e doença arterial coronariana. Além do alto teor de potássio, boa alternativa para os hipertensos, desde que não seja adicionado o sal na preparação em grande quantidade. Está esperando o que para cair num belo prato?!

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